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Traveler

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       Ser médica sempre foi meu sonho desde que me conheço por gente.

      Começou na infância depois que meus pais morreram. Mas bem, todo médico usa aquela típica frase quando lhe perguntam porque escolheu ser um doutor “eu gosto de cuidar das pessoas”, embora seja uma boa resposta esse não é o motivo número 1.

Não para mim, pelo menos. Eu queria algo em que pudesse dar o que me foi tirado e doar o que nunca tive, desde que meus pais se foram. Entrei na medicina pela vida e pelo amor.

    Ver um filho que passou horas na sala de espera receber a notícia que sua mãe ou pai e até esposa, está bem é gratificante pois um sorriso sincero vale mais do que palavras ditas para agradar.

     Desde o início eu soube que não seria fácil e que eu doaria boa parte da minha vida para realizar este sonho. Porém, todos temos que fazer sacrifícios. Eu não sacrifiquei nada mais do que já haviam me roubado.

Amar é uma coisa incrível eu sei; sentir aquelas coisas idiotas como o friozinho na barriga; as mãos trêmulas ou as palavras erradas, mas tudo tem seu lado obscuro. E o do amor é a paixão, que ama nos fazer de idiotas e iludir nosso coração até sobrarem apenas migalhas ínfimas.

       Eu já me apaixonei e foi lindo, não minto, foi surreal. Tão surreal que demorou anos para que caísse a ficha que somente eu amava ali e o outro só queria mais uma para sua coleção.

     Toda mulher tem o sonho de se casar e isso começa quando nem saímos das fraldas ainda — aqui se encontra o erro de nossas vidas. Achamos, desde bem novinhas, que existe um príncipe encantado nos esperando em algum lugar, aí vem o balde de água fria da realidade nos apedrejar com pedaços de gelo — no fim o que encontramos são apenas sapos gosmentos.

Eu também já estive prestes a subir no altar e me casar com meu “príncipe”, mas fui a noiva deixada no altar. No grande dia tudo estava como eu havia sonhado, cada coisa em seu devido lugar até que... puff o castelo mágico desmoronou me revelando as ruinas que sempre estiveram ali e eu nunca quis ver.

     O príncipe se tornou sapo e o encantado desmascarado. Percebi que não era tão bonito e espetacular como minha mente criara, pelo contrário, ele era um monstro.

    O mal das pessoas que sofrem e estão sozinhas é ignorar o fato de que existe um monstro real e ele é feio e mal e totalmente assombrado. Não existe fadas, príncipes, torres e cavalheiros... nada disso. Descobri muito tarde que o meu amor era a outra face do próprio; a paixão. Do amor pode sair chamas, mas da paixão saem os espinhos e as brasas dolorosas. Se perder é fácil.

      A carência pode nos persuadir e enganar e, por isso, coisas assim aconteciam.

Tipo seu “príncipe” ser na verdade um sapo que já casou milhares de vezes e que não se chama Conrad e sim Fred, Bart, Steve e muito mais — ele tem tantos nomes que encontrar o real é impossível — e pode esquecer que você será o amor da vida dele e que será a mãe dos filhos dele.

     O maluco já tem vários outros amores e filhos perdidos que ele, acidentalmente, esqueceu — que ele abandonou! — e que não é a única a ter um anel com a frase “amor para a vida toda” e a receber mensagens como: “morrerei sem você”, “oh amor da minha vida e blá-blá-blá.”

       A medicina me ajudou a sufocar minha dor e traição. Afinal, estamos no século XXI e quem precisa casar aqui? Veja só! Ninguém. Ser solteira não é mais ser a tia ou a solteirona e sim a mulher moderna e eficaz. A rainha e não a princesa em perigo.

Depois do calote que o amor me deu eu aprendi a conviver sozinha; comigo e novamente comigo.

        — Kirsty quer se juntar a nós? — Uma “amiga” de trabalho segurou meu braço me fazendo acordar de meus devaneios como de costume.

       Sabe, depois que o mundo decide cair sobre nós e jogar tomates também por causa de nossos erros e pecados, a vida fica chata e a realidade cruel. As esperanças morrem e pode esquecer o sonho do véu e grinalda.

         — Não, obrigada. Estou ocupada. — menti, descaradamente.

      Onde estar sentada fingindo folhear relatórios de pacientes já atendidos, é ocupada? Para pessoas falsas detalhes como esse passão despercebidos, assim como meus olhos lacrimejando por conta das lembranças,

         — Okay.

       Dei o meu melhor sorriso esperando que ela saísse do meu lado e sumisse com o resto do seu grupinho de alunos, que ainda sonham com festas e carros caros no primeiro ano de faculdade.

Inocentes, pensei balançado meu copo de café e seguindo as voltas do líquido escuro.

Finalmente sozinha e em silêncio peguei meu livro da bolsa disposta a retomar minha leitura da noite passada. Tinha consciência que meu turno havia chegado ao fim e eu poderia retornar para casa.

Contudo, Candesy não era das melhores companhias e muito menos uma pessoa que te faz um café enquanto você conta sobre o plantão e o hospital lotado tanto de paciente quanto de residentes e internos, Candy era a pedra no sapato. Só faz presença mesmo ou como dizem: só serve para fazer sala.

      Abri o livro e continuei da página que parei. Desde que resolvi dar uma olhada nele — depois que o encontrei na rua nem Candesy e muito menos eu o abri até Eron o encontrar e insistir que deveríamos ver o que havia escrito nele cismando que poderia ser um objeto histórico — eu comecei a me conectar a hístoria.

      Foi difícil no início conseguir lê-lo já que ninguém conseguia abri-lo, mas após inúmeras tentativas de tentar abrir a fechadura com uma faca, eu apenas o puxei e ele simplesmente abriu revelando seu conteúdo inesperado, mas magnífico. Eron bufou e deu de ombros desanimado, Candy nem deu a mínima e ele acabou ficando pra mim.

Nele contava uma história ou estória — era incerto seu conteúdo — de guerra datada no século de 1941.

     Apesar de aparentemente me parecer um livro histórico e até um diário de um dos sobreviventes da guerra talvez, não havia nome da obra ou do autor e ainda por cima era escrito à mão e me parecia que não era tinta de caneta e muito menos grafite de lápis que foram usados para o escrever. Me lembrava a tinta usada para escrever com penas.

      Se fosse, então, o livro deveria ter uns quatrocentos e poucos anos e não 71 anos, e o pior, Eron teria razão. Ou foi apenas escrito com uma caneta muito barata.

Era histórico e faria certamente uma grande parte da história literária da Europa. Só de pensar eu me sentia muito egoísta por não querer o dividir com ninguém. 

Mas achado não é roubado, não é? E pular algumas partes também não, né?

“A poeira baixara e eu podia distinguir quem eram os vivos e quem eram os mortos. Haviam vários homens nas valas e poucos estavam de pé. Eu muito contrariado optei por me esconder entre os mortos para assim prezar minha sobrevivência e ainda meus alvos.

 Jamais considerei matar alguém e muito menos roubar, mas no campo de batalha sobrevivi aquele que for esperto. Se não matar morrerá e se não roubar a arma do defunto... morrerá.

Por aqui tudo começa e termina com morte como se o sol derramasse o liquido escarlate em nossas mãos e a lua nos fizesse beber dele.

Não existe manhãs bonitas quando está em guerra e tão pouco comida farta e cama macia. Sobreviver é a sua primeira missão, matar para se defender a segunda e roubar o que puder do inimigo é a terceira.

Admito que matar não me agrada, todavia que eu poderia ser o morto despencando na terra úmida e mexida, como um saco de batatas, com um furo nos miolos.  No fim, devemos adquirir o instinto animal e esquecer qualquer que seja sua moral.

Verá que socorrer um colega e companheiro será a única coisa humana que fará”.

      Entraram na sala de descanso e eu fui obrigada a pegar minhas coisas e ir embora para casa — o último lugar em que eu queria estar. Marcando a página em que eu lia com a fita azul que ganhei de mamãe em meu aniversário de 6 anos, me retirei com meu pacote especial e único.

     Andei cansada e trôpega até o estacionamento onde uma fileira variada de marcas e modelos se destacava na escuridão. O céu havia consumido as estrelas e a lua aparecia apenas para nos saldar com um sorriso preguiçoso. O Audi A3 acendeu as luzes mostrando-me em que vaga eu havia o deixado. Ter um momento sozinha era a coisa mais difícil depois de tentar me esquivar de Candesy.

    Se fosse há três anos atrás eu teria parado ao lado do poste de luz e esperado por meu ex-noivo com um grande sorriso e o coração batendo nos ouvidos, bem diferente de agora; cansada, com olheiras e melancolia total.

   Acabei descobrindo uma coisa muito importante com essa lição que o mundo me deu: a vida não muda ela gira e depois capota, lhe largando em qualquer vala na estrada.

© 2020 D. B. WAYNE

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